No início deste mês, o presidente estadunidense Joe Biden passou a defender, publicamente e perante a Organização Mundial do Comércio, a suspensão por todos os países-membros dos direitos de exclusividade dos titulares de patentes relativas a vacinas e a medicamentos utilizados na prevenção e no tratamento de casos de contaminação pelo vírus Sars-Cov-2¹ . Esse posicionamento vai ao encontro daquilo que muitos países emergentes, liderados por Índia e África do Sul, têm defendido desde outubro de 2020: a flexibilização temporária dos direitos de propriedade intelectual a fim de atender demandas sanitárias, em especial, dos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento².
Esse mecanismo, popularmente conhecido como quebra de patente, não é, entretanto, uma novidade jurídica decorrente da pandemia de Sars-Cov-2. No Brasil, a Lei de Propriedade Industrial, por meio de seu artigo 71, prevê, em casos de emergência nacional ou de interesse público, a possibilidade de licenciamento compulsório para a exploração de patente³. Nesses casos, compete ao Poder Executivo Federal constatar a impossibilidade do titular da patente ou de seu licenciado de atender a situação de emergência nacional ou interesse público e, assim, de ofício, conceder a licença compulsória desde que respeitadas as condições de não-exclusividade, temporariedade e uso público não-comercial.
Em 2007, por exemplo, a Presidência da República, por meio do Decreto nº 6.108, concedeu o licenciamento compulsório, por interesse público, das patentes referentes ao medicamento Efarivenz utilizado no tratamento de pessoas com Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. Em duas outras ocasiões (2001 e 2003), o Governo Federal chegou a anunciar o licenciamento compulsório dos medicamentos Nelfinavir e Kaletra como estratégia bem-sucedida de negociação para a redução dos valores cobrados pelos laboratórios titulares das patentes.
De volta ao âmbito internacional, a própria Organização Mundial do Comércio também oferece as ferramentas jurídicas de exceção adequadas para casos que demandem o licenciamento compulsório de patentes. Em 2017, foi introduzido, ao Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS), o artigo 31bis que permitiu, aos membros importadores elegíveis, ou seja, aos países-membros de menor desenvolvimento relativo ou demais membros com capacidade técnica insuficiente de produção local, a flexibilização dos direitos de propriedade intelectual para importação de produtos farmacêuticos patenteados .
A Bolívia foi o primeiro Estado a lançar mão deste dispositivo : na semana passada, a Organização Mundial do Comércio foi oficialmente notificada da intenção do país-membro de acionar o sistema previsto pelo artigo 31bis para importação de até quinze milhões de doses de uma vacina de vetor viral de adenovírus tipo 26 – versão genérica da vacina desenvolvida pela Johnson & Johnson a ser produzida pelo laboratório canadense Biolyse Pharma . Destaca-se, entretanto, que se trata de um mecanismo marcado fundamentalmente pela reciprocidade uma vez que, para ser efetivado, tanto o membro importador como o membro exportador devem conceder a licença compulsória.
Assim, constata-se que tanto a legislação doméstica como o direito internacional oferecem mecanismos jurídicos adequados para a suspensão temporária dos direitos de propriedade intelectual de patentes farmacêuticas em favor do interesse público e em situações emergenciais tal como a atual pandemia de Sars-Cov-2. A aprovação, por sua vez, de uma flexibilização ampla e generalizada pelos países-membros da Organização Mundial de Comércio é uma demanda justa e adequada, mas que, por exigir uma aprovação consensual e enfrentar intensa resistência política de alguns países-membros, pode ser mais facilmente contornada pelo sistema previsto pelo artigo 31bis.
Para além disso e no âmbito interno, inescusável olvidar que a mera concessão de licenciamento compulsório de patentes relativas a vacinas e a medicamentos utilizados na prevenção e no tratamento de casos de contaminação pelo vírus Sars-Cov-2 não é uma solução imediata para os desafios de saúde pública do país. Isso quer dizer que a concessão de um licenciamento compulsório não representa uma transferência automática de tecnologia e de capacidade produtiva. Adversidades como carência de know-how, falta de suporte técnico do titular da patente e capacidade técnica laboratorial local insuficiente são fatores que podem aumentar exponencialmente o tempo e o custo de fabricação de vacinas ou de medicamentos cujas patentes forem, eventualmente, licenciadas.
Alternativamente, interessante notar que o regulamento do artigo 31bis também estimula a “transferência de tecnologia e o desenvolvimento de capacidades no setor farmacêutico com vista a superar o problema enfrentado [pelos países-membros] com insuficiente ou nenhuma capacidade de fabricação no setor farmacêutico” . Exemplo disso seria o Contrato de Encomenda Tecnológica em fase final de negociação entre a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e o laboratório AstraZeneca que permitirá, gradualmente, a produção do Insumo Farmacêutico Ativo em território nacional para fabricação da vacina AZD1222, também conhecida como Oxford/AstraZeneca.
A realidade brasileira, entretanto, não pode ser aplicada à maioria dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. Raros são os países que possuem uma indústria farmacêutica nacional suficientemente sólida para receber de prontidão transferências de tecnologia para produção de medicamentos e, sobretudo, de vacinas. A quebra de patentes não resolve, no curto prazo, a desigualdade de acesso às vacinas e aos medicamentos. Apenas a imediata transferência do excedente de estoques dos países desenvolvidos ou produtores seria capaz de – ainda que momentaneamente – minimizar as mazelas desse injusto e nefasto desequilíbrio.
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(1)-Covid: US backs waiver on vaccine patents to boost supply. British Broadcasting Corporation, 2021. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/world-us-canada-57004302>. Acesso em: 17 de maio de 2021.
(2)-India, South Africa to make fresh push for waiver of vaccine patents at WTO. Hindustan Times, 2021. Disponível em: < https://www.hindustantimes.com/india-news/india-south-africa-to-make-fresh-push-for-waiver-of-vaccine-patents-at-wto-101619886294125.html>. Acesso em: 17 de maio de 2021.
(3)-BRASIL. Lei nº 9.279 de 14 de maio 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_0 3/leis/l9279.htm>. Acesso em: 17 de maio de 2021.
Guilherme Bellini Calzado
Revisado por Fernanda Emerenciano