DO PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE DAS MARCAS
Por: Dr. Bruno Costa de Paula
Nesse artigo, buscaremos trazer alguns apontamentos sobre o princípio da especialidade das marcas.
Esse princípio foi muito bem definido pelo Professor Gama Cerqueira:
(…) nada impede também que a marca seja idêntica ou semelhante à outra já usada para distinguir produtos diferentes ou empregada em outro gênero de comércio ou indústria. É neste caso que o princípio da especialidade da marca tem sua maior aplicação, abrandando a regra relativa à novidade. A marca deve ser nova, diferente das existentes; mas, tratando-se de produtos ou indústrias diversas, não importa que ela seja idêntica ou semelhante à outra em uso¹ . Grifo nosso.
Denis Barbosa segue o mesmo raciocínio de Gama Cerqueira:
Um dos princípios básicos do sistema marcário é o da especialidade da proteção: a exclusividade de um signo se esgota nas fronteiras do gênero de atividades que ele designa. Assim se radica a marca registrada na concorrência: é nos seus limites que a propriedade se constrói. “Stradivarius”, para aviões, não infringe a mesma marca, para clarinetes: não há possibilidade de engano do consumidor, ao ver anunciado um avião, associá-lo ao instrumento musical² . Grifo nosso.
O princípio da especialidade das marcas está discriminado no artigo 123, I, da Lei 9.279/96:
Art. 123. Para os efeitos desta Lei, considera-se:
I – marca de produto ou serviço: aquela usada para distinguir produto ou serviço de outro idêntico, semelhante ou afim, de origem diversa; Grifo nosso.
Apenas para ilustrar um pouco mais sobre a aplicação do princípio da especialidade das marcas, extraímos trechos de acórdão de recurso especial julgado pelo Ministro Humberto Gomes de Barros, do Superior Tribunal de Justiça (STJ):
EMENTA – PROPRIEDADE INDUSTRIAL. COLISÃO DE MARCAS. “MOÇA FIESTA” E “FIESTA”. POSSIBILIDADE DE ERRO, CONFUSÃO OU DÚVIDA NO CONSUMIDOR. NÃO CARACTERIZAÇÃO.
Para impedir o registro de determinada marca é necessária a conjunção de três requisitos: a) imitação ou reprodução, no todo ou em parte, ou com acréscimo de marca alheia já registrada; b) semelhança ou afinidade entre os produtos por ela indicados; c) possibilidade de a coexistência das marcas acarretar confusão ou dúvida no consumidor (Lei 9.279⁄96 – Art. 124, XIX). Afastando o risco de confusão, é possível a coexistência harmônica das marcas. VOTO: MINISTRO HUMBERTO GOMES DE BARROS (Relator): Discute-se a possibilidade de coexistência harmônica entre as marcas “MOÇA FIESTA” e “FIESTA”, pertencentes às classes 31.10 – 30 (laticínios em geral, leite de soja) e 35 (bebidas, xaropes e sucos concentrados), respectivamente.
Da leitura dos artigos percebe-se que para que a marca não seja registrável, se faz necessária a presença concomitante de três requisitos: a) imitação ou reprodução, no todo ou em parte, ou com acréscimo de marca alheia já registrada; b) que sirvam as marcas para distinguir ou certificar produto ou serviço idêntico, semelhante ou afim; c) que a convivência das duas marcas possibilite erro, confusão ou dúvida no consumidor. Dos fatos delimitados no acórdão recorrido, constata-se que a recorrente utiliza a marca para comercializar sidra (bebida fermentada). Já a recorrida, usa a expressão Fiesta para denominar leite condensado com sabores diversos. Não há, portanto, risco de confusão. As marcas em questão são de produtos completamente distintos (sidra e leite condensado), pertencentes a classes também distintas (laticínios em geral, leite de soja – bebidas, xaropes e sucos concentrados) e apresentam-se ao consumo com embalagens e rótulos totalmente diferentes. É possível a coexistência harmônica das marcas, ainda que a mais recente contenha a reprodução da mais antiga, se inexistente o terceiro requisito apontado na lei – possibilidade de erro, dúvida ou confusão. Nego provimento ao recurso especial, ou dele não conheço³ . Grifos nossos.
Bem se vê que, ainda que haja alguma afinidade relativa entre os produtos/serviços, as peculiaridades dos itens, bem como os especializados públicos consumidores, autorizam o entendimento de possível convivência marcária pelo princípio da especialidade.
Desta feita, o princípio da especialidade das marcas possibilita a coexistência de diferentes titulares que utilizam-se de marcas similares, contudo, para designar produtos diversos, sem aparente conflito e de modo pacífico e harmônico no mercado.
Relevante salientar que tal princípio tem sido fundamental na linha de entendimento do E. Tribunal de Justiça de São Paulo.
A propósito, vejamos recente julgado da Corte Paulista em que se aplicou o princípio da especialidade e levou-se em conta os públicos alvos em conflito marcário.
Processo
Apelação n° 1003679-60.2014.8.26.0564
Órgão julgador
2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial
Julgamento
19/09/2016
Relator
Fabio Tabosa
Ementa
Propriedade industrial. Marca. Demanda condenatória em dever de abstenção, cumulada com pedido indenizatório, ajuizada por sociedade titular da marca mista de produtos “Cristal Componentes Técnicos” e fundada em alegada violação a direito marcário, bem como concorrência desleal, tendo em vista a exploração pela ré das marcas de serviços “Auto Shopping Cristal” e “Cristal”. Descabimento. Proteção oriunda de registro marcário que alcança apenas os produtos e serviços enquadrados na mesma classe da marca registrada. Princípio da especialidade. Signos distintivos adotados pelas partes registrados entretanto em classes diferentes, no primeiro caso de produtos e no segundo de serviços. Ausência de confusão entre as atividades e os públicos consumidores. Autora que é fabricante de determinadas peças automotivas, voltando-se sobretudo à indústria automobilística, ao passo que a ré é gestora de centro de vendas de veículos usados. Concorrência desleal e violação a direito marcário não caracterizadas. Sentença de improcedência confirmada. Apelação da autora não provida. (g.n)
Nesse precedente, embora as partes atuassem em ramos afins (peças automotivas vs. vendas de veículos), o princípio da especialidade das marcas também deu o tom no julgamento, de modo a autorizar a coexistência dos signos distintivos em questão.
Portanto, as diferenças de especialidade são tão relevantes nas disputas de fundo marcário que o E.TJSP entende inexistir conflito até mesmo quando as empresas atuam em segmentos correlatos, caso as diferenças de público sejam suficientes para afastar conflito.
Dessa forma, podemos concluir que o registro de marca só constitui propriedade em relação ao emprego do signo num mercado específico (princípio da especialidade). Tanto subjetivamente, quanto objetivamente, a propriedade só se adquire e se exerce em relação a este segmento especializado do mercado, e para seus propósitos.
¹Tratado da Propriedade Industrial, Revista dos Tribunais, 2ª edição, São Paulo, 1982, vol. 2, pág. 779.
²A Especialidade das Marcas, 2002.
³Recurso Especial número 949.514, 3ª Câmara de Julgamento do STJ, decisão unânime